História
O SORRISO DA ZHENG
Nas últimas semanas, revivi minhas emoções sobre a conquista pela seleção brasileira do Mundial da Austrália em 1994 em três textos aqui no site da LBF. Para encerrar a série comemorativa dos 25 anos do feito, resolvi repetir um texto que escrevi quando da comemoração dos vinte anos do Mundial e do qual gosto muito. Ele trata da chinesa Zheng Haixia, derrotada pelo Brasil naquela memorável final.
Na minha ignorância ocidental sempre achei a pivô chinesa Zheng Haixia muito curiosa. A jogadora, apesar da sua forma física impressionante (seus incríveis 2,04m), talento, prêmios e conquistas incríveis, sempre manteve uma postura muito discreta. Uma das suas marcas era um sorriso grande (como a dona) que surgia durante os jogos. Lembro-me de um toco que ela deu em Magic Paula na decisão do Mundial 1994 e logo depois abriu aquele sorriso. Até hoje quando penso na partida, a reação do narrador da partida para o Brasil, Luciano do Valle, sempre me vem à cabeça: “Ela não sabe o que fez com esse sorriso.”
MVP daquele Mundial (médias de 26 pontos, 13 rebotes por jogo e ‘imorais’ 83% de aproveitamento de arremessos), Zheng é uma celebridade na China. Embaixo da cesta, era mortal. Muitas vezes era marcada por duas, três atletas do time adversário. Carregava a seleção nas costas e foi a alma das conquistas do bronze mundial em 1983 (16,7 pontos por jogo) e do bronze olímpico em 1988 (28,1 pontos por jogo). Com números mais discretos, esteve nas pratas olímpicas de 1984 (7,4 ppj) e 1992 (7 ppj). Suas últimas competições foram a Olimpíada de Atlanta 1996 (nona colocação – 18,1 ppj) e o Mundial da Alemanha 1998 (décima segunda colocação – 11,8 ppj), quando se aposentou.
Os momentos de menor produção geralmente decorriam de seus problemas crônicos com o joelho e o peso. Tudo isso combinado com uma carga de treinamentos de sete horas por dia.
Mesmo quando não brilhava, Zheng era uma atração a parte. Em Barcelona (1992), foi alvo da atenção do Dream Team. John Stockton cutucou Karl Malone ao vê-la passar e provocou: “Ela é maior que você!”.
Ainda em Barcelona, a americana Daedra Charles declarou após enfrentá-la que a chinesa tinha panturrilhas maiores que as de Arnold Schwarzenegger.
O mesmo confronto mereceu um comentário antipático da estrela Cynthya Cooper. Segundo ela, Haixia trazia o basquete dez anos para trás, numa clara referência ao domínio soviético na década passada, personificado na também gigantesca Uljana Semenova.
Os dados mais curiosos da biografia de Zheng aparecem no final da carreira, quando em um movimento ousado (e sem falar uma palavra em inglês) foi para a temporada de estreia da WNBA (1997) defender o Los Angeles Sparks. Antes mesmo de Yao Ming, a América conheceu Zheng Haixia.
Retirada da sua posição de conforto e instigada a um estilo de jogo de maior mobilidade, Zheng teve problemas, mas não perdeu seu (limitado) rebolado oriental. Teve algumas atuações memoráveis, deu trabalho às melhores pivôs da liga à época e continuou exercitando seu sorriso.
Muito comparada a Shaquille O’Neal, era constantemente perguntada se não seria capaz de enterrar. Ela encerrava o assunto com um rápido “Nem tento.” Na imprensa de Los Angeles muitos recomendavam que Shaquille, então no Lakers, aprendesse a cobrar lances-livres com Haixia, precisa no arremesso.
Consta que numa ocasião a chinesa interrompeu um treinamento dos Sparks e chamou seu tradutor. Queria que ele desse um recado à armadora Tamecka Dixon: ela precisava sorrir mais durante os jogos e mostrar que tinha prazer em jogar basquete.
Perguntada sobre quais jogadores ela admirava, a resposta era tão lacônica como curiosa: “Jordan e eu.”
Zheng hoje leva uma vida confortável na China. É coronel do Exército e capitã de um time junior local. Segue apaixonada pelo basquete e diz acompanhar a liga chinesa e a WNBA.
Suas maiores reclamações eram a calmaria da vida sentimental, limitada pela altura e pela fama.
Mas em 2010, aos 43 anos, Zheng resolveu essa pendência e se casou com Groom Xu Qinghua. Nos registros do casório, lá estava o mesmo sorriso.
Ao ler tudo isso sobre a vida da chinesa, tanto tempo depois, já nem me importava mais com aquele sorriso após o toco em Paula.
Mas ainda assim resolvi escrever para Paula. Não comentei minhas descobertas com a Mágica, mas perguntei se aquele sorriso após o toco havia sido marcante.
Com o bom de humor de sempre, Paula disse que apenas se perguntou: “O que mesmo eu fui fazer dentro desse garrafão?”
Certamente se ouvisse a resposta de Paula, Zheng abriria outro sorriso.
por Bert – Painel LBF